
Localizada a 750 quilômetros de Salvador (BA), Caetité vive as  consequências da exploração de uma mina de urânio na cidade que tem  rendido problemas como o aumento do custo de vida e, ainda, contaminação  da água da qual 46 mil pessoas utilizam diariamente. "Entre os  problemas principais estão o aumento da incidência de câncer, o  potencial de drenagem ácida no sítio da mina e a preocupação com o  futuro, pela convivência com uma indústria que já rendeu para Caetité o  estigma de região radioativa e futuro depósito de lixo atômico,  afugentado turistas e estudantes", explica Zoraide Vilas Boas,  presidente da Associação Movimento Paulo Jackson, em entrevista  concedida à IHU On-Line por e-mail.
Zoraide nos conta sobre os  incidentes que já ocorreram na mina, como estes são apresentados à  comunidade e que tipo de problemas a médio e longo prazos a convivência  com a mina estão trazendo para toda a população da cidade. "A população  passou a temer mais os efeitos da mineração na saúde, a partir de 2005,  quando as Indústrias Nucleares do Brasil - INB admitiram que não faziam o  monitoramento da saúde dos trabalhadores e dos moradores do entorno da  mina, descumprindo a condicionante do licenciamento ambiental", conta  ela.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a situação da mina de urânio localizado na cidade de Caetité (BA)?
Zoraide  Vilas Boas – Não saberia dizer, com precisão, a situação da mina,  porque a marca registrada do setor nuclear – de falta de transparência,  de diálogo, de informação – não é diferente na Bahia, onde as Indústrias  Nucleares do Brasil (INB) exploram urânio há mais de dez anos.  Subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, a INB é uma sociedade  de economia mista que atua com produtos e serviços relacionados ao  ciclo do combustível nuclear. É controlada pela Comissão Nacional de  Energia Nuclear (CNEN), proprietária e, ao mesmo tempo, fiscal das  principais instalações nucleares e radioativas do país. Assim, os  poderes públicos, a imprensa, a sociedade não têm livre acesso ao que se  passa na Unidade de Concentrado de Urânio (URA), que fica em Caetité,  no sudoeste baiano.
O que sabemos é que a URA não consegue se  enquadrar nas normas de radioproteção e segurança, nacionais e  internacionais; que foi acusada de imperícia e negligência pela própria  CNEN, que já parou sua produção inúmeras vezes para consertar erros do  projeto de engenharia e que acumula várias queixas trabalhistas na  Justiça, sendo réu em duas Ações Civis Públicas, propostas pelos  Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF), em 2009. Só em 2010  a empresa barrou duas visitas às suas instalações: uma da deputada do  PV alemão, Ute Koczy, porta-voz do partido para assuntos relacionados à  política de desenvolvimento. Em agosto, ela veio conhecer detalhes e  efeitos socioambientais do Programa Nuclear Brasileiro e das  representantes da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente, da  Plataforma Dhesca Brasil (Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e  Ambientais). E também barraram a visita da socióloga Marijane Lisboa,  professora da USP, e da antropóloga Cecilia Mello, que tentaram conhecer  a mineração, em julho passado.
A mina fica no distrito de  Maniaçu, sertão da Bahia, entre os municípios de Lagoa Real e Caetité, a  750 quilômetros de Salvador, capital do estado. Caetité tem mais de 46  mil habitantes, sendo 40% na zona rural. Lagoa Real tem cerca de 14 mil,  com 80% na zona rural. Ali, o urânio é extraído do minério, purificado e  concentrado em forma de sal amarelo, que vai para o Canadá, onde é  convertido em gás, seguindo para enriquecimento em países europeus e  volta à Fábrica de Rezende (RJ), onde se conclui a geração do  combustível para as usinas Angra I e II (RJ).
Apesar da tentativa  de impor que o setor nuclear seja estratégico, de segurança nacional, o  que justificaria sigilo total sobre suas atividades, os movimentos e  entidades sociais e populares têm conseguido reagir contra a manipulação  da informação pelo setor, a omissão dos poderes públicos fiscalizadores  e a falta de controle social sobre a URA. Hoje, por exemplo, embora não  se tenha conhecimento de comunicado oficial aos órgãos públicos, ou à  sociedade, sabemos que a produção está parada desde julho passado.
Sindicalistas  revelaram que isto aconteceu pela “inoperância e incompetência” dos  gestores, responsáveis por “uma série de barbeiragens administrativas,  onde o que se viu foi uma completa falta de entendimento entre a CNEN e a  INB. Ninguém cobrava de ninguém a responsabilidade e a situação se  agravou ao ponto de gerar um prejuízo imenso aos cofres públicos”.  Falaram ainda que isto é parte de um plano “ardiloso e vil” para  privatizar a empresa, mas não informaram os motivos da paralisação.  Segundo comentários extraoficiais, um vazamento de solvente químico  (ácido sulfúrico e outros) para o solo, de proporção ainda desconhecida,  levou a paralisação para reconstruir a unidade de estocagem e  regeneração de solventes, que era tecnicamente inadequada para o  serviço. As comunidades estão preocupadas, pois há cerca de dois anos  fotografaram, perto da área industrial, um minadouro estranho, de uma  água barrenta e espumosa, fato até hoje não investigado, ao que se sabe.  Fala-se também que as bacias de armazenagem dos rejeitos atômicos estão  abarrotadas e a manta que fica no pátio de lixiviação, onde o minério é  submetido à solução de ácido sulfúrico para a retirada do urânio,  estaria furada, provocando contínuos vazamentos.
IHU On-Line – E quais foram os principais problemas que essa mina trouxe para a população?
Zoraide  Vilas Boas – Inicialmente, Caetité sentiu os efeitos sobre a economia,  com a subida de preços de bens de consumo, uso e serviços, de imóveis e  aluguel, quando o custo de vida praticamente quadruplicou. Na sequência  da degradação psicossocial e ambiental, vieram o medo, a incerteza pela  convivência com uma atividade de alto risco para os trabalhadores, a  população e o meio ambiente.
Entre os problemas principais estão a  escassez e a contaminação da água, o aumento da incidência de câncer, o  potencial de drenagem ácida no sítio da mina e a preocupação com o  futuro, pela convivência com uma indústria que já rendeu para Caetité o  estigma de região radioativa e futuro depósito de lixo atômico,  afugentado turistas e estudantes. O comércio se queixa de prejuízos  decorrentes do preconceito contra a mineração atômica, mas quem mais  sofre são as comunidades que vivem num raio de 20 quilômetros, definido  como área de influência da URA, perto de mil famílias de baixa  escolaridade, lavradores, pequenos proprietários rurais, que são as mais  desassistidas pelo Estado. Mas também comunidades rurais dos municípios  de Lagoa Real e Livramento são afetadas pelos malefícios da mina.
A  questão do saneamento ambiental em Maniaçu é gravíssima. Não existe  água para consumo básico, nem para comer. Além de comunidades rurais  estarem consumindo água contaminada, o aquífero está rebaixando e os  poços estão ressecando rapidamente. Estes problemas já eram previstos no  Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), que indicou agravos à saúde da  população, alteração da qualidade do ar, poluição radioativa e  contaminação das águas subterrâneas, do solo e da vegetação. A região  tem sofrido com a violação de direitos humanos, como o direito à  segurança no meio ambiente do trabalho, à saúde, à informação.
Lavradores  foram induzidos a autorizar o uso gratuito, por tempo indeterminado,  das águas subterrâneas de suas propriedades, passando para a URA o  controle da água, oriunda de poços artesianos. Dezenas de poços foram  abertos e, em 2007, uma seca prolongada castigou mais de cem famílias  rurais, que perderam lavouras e ficaram dependentes de água fornecida  pela INB. Hoje temem o impacto da liberação de radônio na atmosfera e da  poeira gerada pelas explosões atômicas e têm seus produtos  agropecuários recusados em feiras livres. São as maiores vítimas do  descaso, da omissão, da negligência dos poderes públicos locais,  estaduais e federais.
IHU On-Line – Que tipo de incidentes já ocorreram na mina?
Zoraide  Vilas Boas – Em dez anos de funcionamento, há registro de mais de 12  eventos, entre acidentes e incidentes nas instalações, no processo  produtivo ou com operários, todos classificados pela empresa como rotina  operacional, independente da sua dimensão. Muitos desses problemas, que  envolvem também o transporte do urânio até o porto de Salvador, estão  detalhados no Relatório sobre Fiscalização e Segurança Nuclear, da  Câmara dos Deputados, que mostra os riscos de acidentes nucleares e  radiológicos no Brasil devido à fragilidade da fiscalização e à falta de  estrutura do sistema de radioproteção – o Sipron. O relatório denuncia a  omissão e a conivência do Ibama, para com a mineração em Caetité, que é  de alto risco para a população e o meio ambiente.
O primeiro e  grave acidente ocorreu em abril de 2000, poucos meses após o início  oficial da operação, com o rompimento das mantas de isolamento das  piscinas, que liberou para o solo cerca de 67 quilos do concentrado de  urânio. A INB e a CNEN tentaram esconder o fato a todo custo, chegando a  sustentar uma versão de sabotagem. Só três anos depois admitiram o  evento, afirmando que os danos foram insignificantes. Em 2004, a bacia  de retenção de particulados da cava da mina transbordou sete vezes,  liberando líquido, com concentração de urânio-238, tório-232 e rádio-226  para o solo. Os fiscais da CNEN recomendaram a suspensão da mineração,  pelo risco de desabamento e contaminação do lençol freático, e a não  renovação da Autorização de Operação. Mas a CNEN ignorou o parecer dos  seus fiscais.
Em junho de 2008, ocorreu novo transbordamento de  licor de urânio, só confirmado três meses depois pelo Ibama. No ano  passado, mesmo sem autorização do Ibama, e sem licença de ampliação da  planta para fazer extração subterrânea, a INB anunciou a conclusão de um  túnel de 500 metros na rocha para começar a mineração subterrânea. De  outubro a dezembro de 2009 ocorreram pelo menos mais dois vazamentos,  numa freqüência de eventos que aumenta a desconfiança sobre as  competências científica e técnica da empresa para lidar com a atividade  atômica.
IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações de quem vive na cidade?
Zoraide  Vilas Boas – As populações da região reivindicam uma urgente auditoria  no complexo INB, por um grupo técnico multidisciplinar, independente,  com representantes da comunidade, e acompanhamento dos Ministérios  Públicos Federal e Estadual; a implantação de um sistema de vigilância  epidemiológica, toxicológica, para identificação de doenças decorrentes  de radiações ionizantes e a instalação, no SUS, de um núcleo para a  prevenção e tratamento de doenças ocupacionais. Reivindicam uma  investigação socioambiental e epidemiológica, independente e  transparente, sobre os riscos de contaminação humana e do meio ambiente  por urânio e outros elementos químicos associados à exploração desse  minério.
Desde 2008, com o agravamento dos conflitos pelo uso da  água, escassa no semiárido e consumida em larga escala pela INB, as  comunidades reivindicam a aplicação da Lei de Recursos Hídricos, segundo  a qual, em situação de carência, a prioridade do consumo é para o  abastecimento humano e animal. A partir de 2009 lutam pelo cumprimento  da liminar concedida pelo juiz de direito de Caetité, em Ação Civil  Pública proposta pelo MPE, que determina ao governo do estado, INB,  prefeituras de Caetité e Lagoa Real a adoção de providências urgentes  para garantir a segurança alimentar e de saúde das populações da região,  ainda não cumpridas integralmente pelos réus.
Reivindicam também  a imediata suspensão das atividades da INB, até ser garantida a  proteção dos trabalhadores e da população, como foi requerido pelo PPF,  em Ação Civil Pública. O MPF propôs ainda que a União e a CNEN custeiem a  realização da auditoria independente, solicitada pela sociedade desde o  acidente de 2000, e que o IBAMA suspenda a licença ambiental existente e  não conceda outras até serem sanadas todas as irregularidades  atribuídas à mineração, em especial a separação entre as funções hoje  acumuladas pela CNEN, de órgão regulador e fiscalizador de si mesmo.
IHU On-Line – Que tipo de resíduos e lixo essa usina de Caetité produz?
Zoraide  Vilas Boas – Para nós, o resíduos líquidos, sólidos, gasosos (este de  dispersão incontrolável), “bota-fora”, rejeitos, estéril fazem parte de  uma só, desafiante e perigosa incógnita, não solucionada por nenhum pais  do mundo: o lixo atômico, gerado em atividades minero-radioativas,  cujos efeitos duram pelo menos 50 mil anos, e que se avoluma no mundo,  como uma ameaça para o futuro da humanidade.
O urânio sai da  Bahia para alimentar as usinas de Angra dos Reis, deixando em Caetité os  custos do uso dessa tecnologia, cara e perigosa. O lixo é produzido em  grande quantidade, devido à baixa concentração do urânio, mas não se  sabe quantas toneladas de rejeitos sólidos já existem. Segundo a INB, a  produção de uma só tonelada de urânio está resultando em três toneladas  de estéril. O lixo fica estocado em tonéis, abertos, corroídos, expostos  a chuvas fortes, contribuindo para a contaminação do solo e das águas  superficiais e subterrâneas e estaria sendo enterrado na URA. O futuro  do lixo atômico em Caetité é uma grande interrogação e preocupação. Ao  que tudo indica, pela omissão da prefeitura municipal e pela  improvisação que predomina no setor, será deixado de herança para o  município administrar quando a reserva do minério acabar.
IHU On-Line – O meio ambiente de Caetité mudou muito em função da usina de urânio?
Zoraide  Vilas Boas – Certamente que o meio ambiente na região mudou muito e  para pior. Os malefícios não foram ainda devidamente quantificados  porque o setor nuclear, além de conseguir que a INB funcionasse  desrespeitando os Princípios da Precaução e Prevenção, exigidos pela  legislação ambiental, e as convenções internacionais de segurança  nuclear, assistiu os poderes públicos estaduais, federais e municipais  atravessarem mais de uma década sem fazer uma avaliação da qualidade do  ar, da saúde dos trabalhadores e da população, dos produtos  agropecuários, do solo. Só a água passou a ser monitorada, mesmo assim  de forma irregular, pelo órgão gestor de águas do estado, o Inga.
Depois  da primeira análise da qualidade da água no entorno da mineradora, que  confirmou a contaminação de três poços ao redor da mina, denunciada, no  final de 2008, pelo Greenpeace, o Inga fez mais três coletas,  confirmando teor de radiação acima dos índices permitidos pela OMS,  Conama e portaria de potabilidade da água do Ministério da Saúde. Por  isto, determinou a interdição de 11 pontos, nove usados para consumo  humano e animal e dois de uso industrial pela INB. Mas as comunidades  seguem consumindo a água contaminada, pois o fornecimento de água  potável pela estado, prefeituras e INB, determinado pela Justiça, não é  suficiente para atender as necessidades das famílias afetadas.
IHU  On-Line – Existe uma estimativa sobre a quantidade de casos de câncer  que vem aparecendo na região de Caetité depois da exploração do urânio?
Zoraide  Vilas Boas – Como falamos em relação à agricultura, ao saneamento  ambiental, na assistência médico-social é o mesmo descaso. Não existe um  acompanhamento transparente e permanente por parte dos poderes públicos  competentes, nem pela INB, que possa revelar, com precisão, a evolução  da saúde humana na região.
A população passou a temer mais os  efeitos da mineração na saúde, a partir de 2005, quando a INB admitiu  que não fazia o monitoramento da saúde dos trabalhadores e dos moradores  do entorno da mina, descumprindo a condicionante do licenciamento  ambiental. A assistência à saúde sempre foi precária na região, que não  dispõe de um centro de diagnóstico de câncer, decorrente de exposição a  radiações ionizantes, e novos casos são registrados, inclusive entre os  trabalhadores.
Observações pessoais revelam um crescente índice  de câncer e depoimentos de ex-empregados relatam contaminação por  contato direto com o urânio. Em diversas inspeções na URA, o Centro de  Saúde do Trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde (SESAB) registrou  irregularidades na avaliação de segurança e medicina do trabalho.  Segundo a SESAB, as neoplasias apresentam tendência crescente entre os  grupos causadores de morte, sendo a segunda causa de óbitos na região,  desde 1999, período do início da exploração. O alto índice de causas de  morte não identificadas, mais de 40%, dificultam uma estatística mais  próxima da realidade, enquanto a INB, claro, nega qualquer nexo entre o  crescente índice de câncer e sua atividade.
Sabemos que a  mineração eleva o potencial de exposição à radiação, especialmente dos  trabalhadores e das comunidades que vivem no entorno da mina. Contudo, o  setor nuclear insiste que há um limite para a exposição à radiação,  incapaz de afetar a saúde humana, minimizando os riscos da URA. Mas  especialistas no ramo consideram que qualquer dose de radiação, por  menor que seja, produz efeito colateral no ser humano. O relatório de  2005, da Academia Nacional de Ciências, sobre os Riscos a Saúde por  Exposição a Baixas Doses de Radiação Ionizante, afirma que não existe  limite seguro para radiação. Segundo a ciência médica, todos os níveis  de radiação causam câncer, mesmo a exposição a doses muito baixas, como o  setor nuclear classifica a radiação em Caetité, onde a saúde da  população não recebe a atenção devida pelo poder público, enquanto as  comunidades são obrigadas a deixar seus afazeres para ir à luta a fim de  tentar assegurar seu direito à saúde, à informação, à justiça  ambiental, à vida!
(Envolverde/IHU On-Line)
Disponível em: <http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=82939>, acesso em 22/11/2010.
Agradecimentos: Alba Vívian Amaral Figueiredo por ter indicado a reportagem.